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Bolívia pós Evo: causas, desdobramentos e incertezas

Antropóloga e professora da FESPSP avalia cenário social e político do país

21/02/2020

Por Ângelo Menezes (Cartola Conteúdo)

Em 29 de janeiro de 2006, o escritor uruguaio Eduardo Galeano afirmou, em uma coluna para o jornal Folha de São Paulo, após a eleição que consagrou Evo Morales o novo presidente da Bolívia, que o país “começa a dar-se conta de que é um país de maioria indígena”. Quase 14 anos depois, chegava ao fim o mandato do mais longevo e primeiro presidente indígena boliviano, eleito por três mandatos em eleições diretas. 

Mas como um dos líderes mais populares da América Latina chegou a ser deposto dessa forma? Para a antropóloga e professora da FESPSP, Dra. Caroline Cotta de Mello Freitas, foram muitas as motivações que levaram à queda do presidente. “A principal causa da queda de Morales foi o levante massivo de setores urbanos e de classe média, que paralisou as cidades do país, com exceção de La Paz e El Alto, e travou o funcionamento do país”, afirma a professora.

A classe média boliviana, por sinal, já apontava seu descontentamento com Evo há tempos, principalmente depois do referendo de fevereiro de 2016, onde o então presidente propunha uma alteração constitucional que permitiria a sua candidatura a um terceiro mandato. O resultado do plebiscito foi de 51% dos votos dizendo não a mais um mandato para o presidente, o que foi ignorado por Morales, que se candidatou ao pleito ocorrido em outubro passado.

E foi justamente a eleição de 2019 que culminou na situação atual do país. A partir do momento em que o Tribunal Eleitoral boliviano anunciou a vitória de Evo Morales no primeiro turno, denúncias envolvendo uma suposta fraude eleitoral surgiram por parte da Organização dos Estados Americanos (OEA). O resultado de tudo foi a renúncia do então presidente, em 10 de novembro.

Ao longo dos quase 14 anos de governo, Evo apresentou controvérsias. Apesar da melhora geral nos índices econômicos apresentados em seu governo, de acordo com a professora Caroline, seu período frente à presidência ficou caracterizado “pelo rompimento de alianças com aliados históricos (como os movimentos sociais indígenas, por exemplo), escândalos de corrupção e acusações de envolvimento com o narcotráfico”. Além disso, quando os protestos tiveram início, Morales “encontrou um contexto em que inclusive a esquerda boliviana e parte das classes subalternas, que historicamente o apoiaram, dirigiam fortes críticas ao seu governo”, conclui a antropóloga.

Esse cenário foi plenamente favorável para que houvesse uma fragmentação política no país. Justamente a divisão entre os campos políticos fez emergir uma liderança que, até então, ocupava um papel de coadjuvante na Bolívia: Jeanine Áñez, uma senadora evangélica, era a quinta pessoa na linha sucessória. Após todos à sua frente renunciarem, assumiu a presidência do país prometendo que faria um governo interino, de transição para as novas eleições do país, e que não seria candidata à presidência. 

Entretanto, não foi isso que aconteceu. Jeanine se assumiu candidata e segue como presidente em exercício. Sua chegada ao parlamento para assumir o governo foi emblemática, uma vez que carregava consigo uma bíblia, fazendo clara oposição à laicidade do estado boliviano garantida pela constituição de 2009 promulgada por Evo.

Jeanine aparece em terceiro lugar nas pesquisas da eleição que ocorrerá em 3 de maio. O pleito deve definir o novo presidente e vice-presidente, além de novos senadores e deputados. Todavia, para a professora Caroline, ao que tudo indica, “as novas eleições não resolverão o conflito de fundo que existe na Bolívia. Tensões históricas entre as regiões do Ocidente e Oriente, de raça, classe e entre distintos projetos de país, entre outras coisas, o que está em jogo é o projeto de Estado Plurinacional e seus ideais”.

Prever o que acontecerá em maio não é tarefa fácil. O Movimiento al Socialismo (MAS), partido de Evo, tem como principais adversários duas grandes frentes de direita e uma aliança de centro. Pesquisas de intenção de voto apresentadas pelas redes de televisão Red Uno e UNITEL destacam, no entanto, que o candidato do MAS e ex-ministro Economia e Finanças de Bolívia no governo Morales, Luis Arce, tem 31,6% das intenções de voto.

Carlos Mesa, ex-presidente do País, é o segundo colocado com 17,1%. Jeanine Áñez aparece com 16,5% das intenções e Luis Camacho, dirigente do Comité Cívico Pro Santa Cruz (o maior comitê civico boliviano, formado por 24 setores da sociedade) aparece em quarto, com 9,6% das intenções de voto. No entanto, caso haja um segundo turno, a probabilidade de Arce sair vencedor pode ser considerada muito difícil. Pesquisas apontam que a rejeição ao MAS chega a 70%, abrindo caminho para que a eleição seja definida pela rejeição dos candidatos.

A tensão no país é grande. Os ares de ilegalidade e autoritarismo rondam a disputa prevista para maio. Entre tantas incertezas, o fato é que a Bolívia de tem grandes chances de voltar aos braços dos grupos que dominavam o país antes de 2006.

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